Ler está na moda: Ana Luísa Amaral

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Ana Luísa Amaral nasceu em Lisboa, em 1956, mas viveu desde os nove anos em Leça da Palmeira, Norte de Portugal. Foi professora na Faculdade de Letras, no Porto e possui um Doutoramento sobre a Poesia de Emily Dickinson, de quem é tradutora. Algumas das suas obras foram levadas ao teatro e, em 2007, foi merecedora do Prémio Literário Casino da Póvoa/Correntes d’Escritas, pelo seu livro “A génesis do amor”, que foi finalista do Premio Portugal Telecom, em 2008. Obteve também o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (APE) pelo livro “Entre dois rios e outras noites”, e em 2012 ganhou o Premio António Gedeão pelo seu poemário “Vozes” (2011).

Os seus livros estão publicados em países como Suécia, Holanda, Itália, França, Brasil e Venezuela. Por certo, a escritora portuguesa visitou várias cidades do nosso país quando participou no IX Festival Mundial de Poesia 2012, tendo efectuado uma paragem especial no Estado de Lara, onde compartiu com crianças no Parque Las Mayitas de Sarare, num conversatório-recital no Museu de Barquisimeto, entre outros eventos.

Um pouco só de Goya: carta a minha filha

Lembras-te de dizer que a vida era uma fila?
Eras pequena e o cabelo mais claro,
mas os olhos iguais. Na metáfora dada
pela infância, perguntavas do espanto
da morte e do nascer, e de quem se seguia
e porque se seguia, ou da total ausência
de razão nessa cadeia em sonho de novelo.

Hoje, nesta noite tão quente rompendo-se
de junho, o teu cabelo claro mais escuro,
queria contar-te que a vida é também isso:
uma fila no espaço, uma fila no tempo,
e que o teu tempo ao meu se seguirá.
Num estilo que gostava, esse de um homem
que um dia lembrou Goya numa carta a seus
filhos, queria dizer-te que a vida é também
isto: uma espingarda às vezes carregada
(como dizia uma mulher sozinha, mas grande
de jardim). Mostrar-te leite-creme, deixar-te
testamentos, falar-te de tigelas — é sempre
olhar-te amor. Mas é também desordenar-te à
vida, entrincheirar-te, e a mim, em fila descontínua
de mentiras, em carinho de verso.

(…) Não sei que te dirão num futuro mais perto,
se quem assim habita os espaços das vidas
tem olhos de gigante ou chifres monstruosos.
Porque te amo, queria-te um antídoto
igual a elixir, que te fizesse grande
de repente, voando, como fada, sobre a fila.
Mas por te amar, não posso fazer isso,
e nesta noite quente a rasgar junho,
quero dizer-te da fila e do novelo
e das formas de amar todas diversas,
mas feitas de pequenos sons de espanto,
se o justo e o humano aí se abraçam.

A vida, minha filha, pode ser
de metáfora outra: uma língua de fogo;
uma camisa branca da cor do pesadelo.
Mas também esse bolbo que me deste,
e que agora floriu, passado um ano.
Porque houve terra, alguma água leve,
e uma varanda a libertar-lhe os passos

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