Por Agostinho Silva, em Caracas
agostinhosilva
Não é só pelas funções de Vice-Ministro para a Europa que Yván Gil mantém a porta aberta às autoridades portuguesas. Na comunidade lusa na Venezuela, ele é o interlocutor privilegiado com o governo de Nicolas Maduro. Nada que o impeça de alguma dureza nas críticas a Portugal, primeiro pelo reconhecimento de Juan Guaidó como Presidente da Venezuela, e depois pelos 1.500 milhões de dólares ‘congelados’ no Novo Banco. “Parte desse dinheiro é para comprar medicamentos e outros fornecimentos para os hospitais”, denuncia.
Na entrevista exclusiva ao JM em Caracas, Yván Gil fala da admiração pela colónia portuguesa e das relações que ficaram “tensas”. E se a Venezuela reconhecesse um português que saísse à rua a se proclamar Primeiro-ministro ou Presidente de Portugal? – argumenta. Mesmo entendendo a posição política, exige que Lisboa emende a mão.
Gil minimiza também o número de portugueses e luso-descendentes que fugiram do país. “Aqui há cerca de um milhão e nos últimos anos regressaram à Madeira pouco mais de 15 mil. A grande maioria quer estar na Venezuela.”
É vice-ministro das Relações Exteriores para a Europa, tem também uma excelente relação com as autoridades portuguesas. Como analisa as atuais relações com Portugal e o que é que espera que Portugal faça no seio da União Europeia?
Para nós Portugal é um grande país, um grande povo, com quem temos uma relação histórica. Milhares de portugueses e de luso-descendentes vivem na Venezuela, misturados em todos os estratos sociais da população: classe trabalhadora, agricultura, indústria, serviços, alimentação. Para nós, é um povo honrado com quem temos as melhores relações e enorme carinho. Mais de 80 por cento vieram da Madeira.
Entre governos, historicamente também temos boas relações. Com o Presidente Chavez, durante a crise financeira de Portugal, creio que a Venezuela foi o primeiro e único país, por exemplo, que dotou todas as crianças venezuelanas de computadores Magalhães, desenvolveu projetos de alimentação, o porto de La Guaira, sempre com empresas portuguesas. Temos acordos vigentes em várias áreas económicas do país, temos uma boa relação com o governo português, que apesar de tudo esteve tensa, devido ao reconhecimento que o fez o governo português, sobretudo ao nível da União Europeia, ao deputado que se auto-declarou na rua.
Não quero imaginar o que se passaria se o governo venezuelano reconhecesse algum português que saísse à rua e se declarasse primeiro-ministro ou presidente de Portugal sem que tivesse tido um único voto para isso.
Entendemos a posição política e queremos que Portugal rectifique essa posição e ajude a rectificar a da União Europeia.
Não pedimos mais nada, não pedimos apoio ao Presidente Maduro, ao governo. O que pedimos é respeito ao Direito Internacional e à soberania nacional. Aqui na Venezuela elegemos um Presidente, não estamos a pedir mais nada, não nos interessa a opinião de outros países para além do respeito à vontade do povo venezuelano que se expressou nas urnas, elegendo o Presidente Nicolas Maduro com mais de 68 por cento dos votos a 28 de maio.
Há um outro problema com Portugal: a Venezuela continua a exigir uma quantia significativa de dinheiro depositado no Novo Banco. Esse problema vai complicar as relações?
Esperemos que não, esperemos que se imponha a sensatez. Diversas instituições de Venezuela têm depositado mais 1.500 milhões de euros no Novo Banco. Já tivemos um problema aquando da queda do Banco Espírito Santo, ficando a Venezuela com uma grande quantidade de dinheiro ‘atrapada’, como ficaram também as poupanças de muitos depositantes venezuelanos e luso-descendentes. O governo da Venezuela foi um desses depositantes.
Agora no Novo Banco temos uma situação inexplicável. Nós somos clientes do banco desde a sua fundação, colocamos o dinheiro ali e fizemos transações sem nenhum problema, mas agora, pensamos nós que seguindo instruções extra-territoriais porque não há nada na lei portuguesa, na lei venezuelana e até europeia, que impeça que as instituições venezuelanas façam uso livre do dinheiro que esta depositado.
Creio que a posição do Novo Banco, muito para além das relações entre a Venezuela e Portugal, está a provocar danos na reputação de Portugal como um país seguro para depositar dinheiros. O que vão pensar outros depositantes e outros investidores que estão a pensar recorrer a instituições bancárias portuguesas, não há segurança jurídica para os depositantes em Portugal. Isso é o que nos preocupa. Tarde ou cedo, vai imperar a sensatez e o governo venezuelano vai poder usar os seus recursos.
À ilha da Madeira chegaram milhares de luso-venezuelanos que estão à espera de um sinal para regressar à Venezuela. Que boas notícias tenho para levar-lhes?
Aqui há cerca de um milhão de luso-descendentes. Nos últimos anos regressaram à Madeira pouco mais de 15 mil – vimos isso junto do governo português. Número muito pequeno quando comparado com o número total. Uma grande maioria de portugueses e luso-descendentes querem estar na Venezuela.
O sinal que se pode dar é que a Venezuela continua a ser um país de oportunidades, na economia, na agricultura, para tudo o que tenha a ver com desenvolvimento económico. Imagino que tenha passado pelos supermercados portugueses, que já estão com outra cara – mais quantidade, melhor qualidade – a época mais difícil de 2016 e 2017, quando as ‘guarimbas’ geraram a escassez de alimentos e que já superámos.
Isso é um sinal claro, estamos em franca recuperação, apesar dos bloqueios e das sanções e de não termos fundos no exterior.
É importante dizer que o Novo Banco reteve fundos de empresas portuguesas. Venezuela tem dívidas importantes com empresas portuguesas, que estão ali esperando. Ou seja, nem sequer é dinheiro para pagar a venezuelanos, é dinheiro para pagar às empresas portuguesas. Não podemos pagar porque está retido, é importante que se desbloqueie. É dinheiro que pode ser investido e reinvestido na Venezuela. Mas precisamos que nos ajudem!
Constata-se que atualmente há uma ‘dolarização’ da economia venezuelana, já que tudo é quantificado e pago em dólares. Isso significa que as mudanças esperadas já vêm a caminho?
Não me cabe a mim avaliar as matérias cambiais. Houve uma flexibilização do controlo de câmbio bastante importante e agora a diferença para o dólar paralelo é mínima, é um atrativo para utilizar as vias oficiais de pagamentoE assim vamos ter uma economia masi aberta, mais transparente.
O bloqueio obrigou-nos a tomar este tipo de decisões. Para os empresários e um esquema mais transparente com benefícios para o abastecimento. Mas não significa a dolarizacao da economia sob nenhum ponto de vista. Porque a única moeda continua a ser o Bolívar Soberano. O sistema está perturbado, fizemos esta opção para evitar a desvalorização da moeda e vamos consegui-lo.
Falou dos supermercados, que agora têm produtos para vender, mas vejo é que não há dinheiro para comprar, os venezuelanos não têm poder de compra. O país está muito pior que há 10 anos, mas está melhor que há seis meses. É esta recuperação que o país precisa?
Estamos recuperando. O bloqueio teve um efeito sobretudo no poder aquisitivo dos venezuelanos e na produção petroleira, principal bem que exportamos. Evidentemente que há um efeito, apesar de que há um ponto de inflexão com as medidas que adoptamos.
Em muitos países, políticos e opinião pública exigem eleições na Venezuela. Também na sua opinião esse é o caminho?
O caminho é a Constituição Bolivariana, que estabelece quais são os prazos, quais são os tipos de eleições, quando se elege o Presidente, quando se elege o Parlamento, quando se faz um um referendo revogatório. Na Constituição venezuelana há uma gama de processos eleitorais, desde a democracia participativa, estou seguro que tudo o que se faça estará dependente da Constituição, incluso o processo de diálogo que está em curso e que estará dependente da Constituição.
Nós tivemos 25 eleições nos últimos 20 anos, oito nos últimos 2 anos. É mais do que uma eleição por ano desde que fizemos a Revolução Bolivariana.
Depois da auto-proclamação de Juan Guaidó, parece que a Venezuela não é mais um país, mas duas metades que não acreditam uma na outra. Que solução para este problema?
O diálogo! Apego à lei que está na Constituição.
Acredita que com estes interlocutores, o diálogo é possível?
Claro que é possível. Dizem as sondagens que 87 por cento da população venezuelana apoia o diálogo e por meios pacíficos. O que há são factores externos, desde os Estados Unidos e da União Europeia, que representam ingerência em assuntos internos, o que gera processos de violência e facções que perturbem o funcionamento da democracia. Mas isso não vai acontecer. A população venezuelana, seja qual for a ideologia, quer o diálogo, quer paz.
Acima de tudo está a Saúde. Na Venezuela não há medicamentos, os hospitais não funcionam. Parece que só umas elites têm dinheiro para terem saúde. Esta situação preocupa-o?
Não podemos ver só a situação atual, temos de ver de onde viemos.
Venezuela era um país em que 80 por cento da população não tinha acesso à saúde antes de 1998. Foi a Revolução Bolivariana que deu acesso à Saúde, em todos os aspetos. A Missão Barrio Adentro permitiu, pela primeira vez, permitiu levar médicos a todas as zonas pobres, aos bairros, as zonas rurais. Algo que não se viu nos últimos 50 a 60 anos.
Se é certo que os sistemas de saúde estão afectados agora, com a falta de ‘insumos’ médicos, porque nos bloqueiam. Parte do que está depositado no Novo Banco é para comprar medicamentos e ‘insumos’ médicos para os hospitais. Não estão nos hospitais não porque falte o dinheiro, mas apenas porque não nos permitem. Porque um banco em Portugal não nos permite comprar medicamentos.
Apesar de tudo, o nosso sistema de saúde não está colapsado. É um sistema em dificuldades que, como no resto da economia, vai ir melhorando à medida que formos tendo acesso aos insumos
Felizmente, encontrámos agora uma via para equipar hospitais, que é através da China, Rússia, Turquia, países amigos com quem estamos a mudar as compras que antes fazíamos nos EUA e na Europa. Todavia isto vai demorar algum tempo até optimizarmos tudo a 100 por cento. Já começa a ver-se uma melhoria para resgatar o sistema que implementámos e que até 2014-2015 esteve a funcionar na plenitude.
Como responsável pelas Relações Exteriores com a Europa, essa é a pior zona geográfica para o governo de Nicolas Maduro?
Quando se fala da Europa é preciso ver que estamos apenas a falar da parte ocidental, da União Europeia, muito subordinado aos Estados Unidos e ao presidente Trump que não de um bom amigo da Europa. Vemo-lo a enfrentar a União Europeia em questões económicas como as migrações, com princípios antagónicos à União Europeia em matéria de alterações climáticas, desarme nuclear, cultura… em todos os aspetos vemos contradições. Mas no caso da Venezuela, vemos que a Europa, apesar de ter tantos interesses na Venezuela, continua a seguir cegamente o que lhe dizem dos EUA. Mas isso é apenas uma parte da Europa, um continente que está a ser chamado para fazer o equilíbrio político no mundo. Oxalá que em pouco tempo a Europa possa reencontrar-se e ser o ponto de equilíbrio não só para a Venezuela, mas para o mundo inteiro.